Viver do Mar

06/05/2010 14:05

 

I.

O mar está inquieto nesta tarde de quinta-feira. Os homens gritam quando as ondas fortes batem na embarcação fazendo-a quase virar. O céu está cinzento, despejando uma forte chuva sobre nós. Deus deve estar bravo com o que a gente anda fazendo por aqui. Fez São Pedro despachar o maior toró que eu já vi e Yemanjá não deixou por menos, aproveitando da chuva e fazendo o mar brigar com a gente. Briga feia que já levou dois dos nossos homens pro azul escuro do mar.

Mas o mar bem que já não está tão azul assim. Avermelhou-se de ódio contra nós e agora tenta nos afundar. Estão todos com medo, e eu também estou. Somos do ofício há algum tempo, mas isso não conta nessas horas. Eu me chamo Francisco, sou escravo de Julião Pereira, e com o que eu ganho aqui na pescaria, dou uma parte, a maior, para ele e fico com algum. Ele disse pra eu trabalhar na pesca e com o tempo de uns cinco anos, juntando um pouquinho daqui e dali, ele me dava à liberdade depois que eu pagasse a ele.

Desde então sou pescador da armação da freguesia de Santo Amaro em Itaparica. Minha tarefa na embarcação é remar e depois que a baleia estiver morta ou quase morta, mergulhar com uma corda e prendê-la, pra depois a gente na baleeira poder rebocar até a armação. E era isso mesmo que nós estávamos fazendo, mesmo com o mar agitado, e foi quando começou a chover forte. Eu, o Antonio e o Christovão estávamos amarrando a corda no baleato, o filhote da baleia, quando veio a primeira onde e o Antonio perdeu uma ponta da corda. A segunda onda arrancou o corpo do filhote de perto da baleeira. A terceira fez a embarcação se afastar da gente. Tive de nadar rápido para chegar até onde tava o barco, mas quando cheguei não vi mais o Antonio e o Christovão. O mar os levou. Foi quando vi a quarta onda trazendo a mãe do filhote, louca da vida. O tombo que ela deu na baleeira derrubou o timoneiro Cláudio e os outros dois remadores, o Valeriano e o Ignácio.

Mas não o Dionísio, esse não. Ele continuava lá em pé, segurando o arpão e esperando a baleia dá a volta. Quando o moço d´armas gritou alguma coisa que eu não entendi, o Dionísio jogou o arpão acertando em cheio a baleia que voltava para uma nova investida contra o barco. E foi o que ela fez mesmo ferida. Desta feita, derrubando o moço d´armas.

Ainda insatisfeita, saiu nos arrastando mar adentro, pois o arpão possuía uma corda presa à embarcação. Antes disso, porém, consegui subir no barco ajudando os outros a também subirem. Estávamos na entrada da Baía de Todos os Santos quando ela começou a nos levar para longe da costa, nos afastando onze ou doze léguas. Dionísio, o arpoador, não parava de gritar para que a gente ficasse de olho na corda para não perder essa baleia. De certa forma foi bom isso ter acontecido, pois nos tirou do meio da tempestade. Quase duas horas depois de iniciado o arrasto, a baleia desfaleceu cansada e mortalmente ferida pelo arpão.

Eu acho que nesse trabalho é tudo questão de tempo. Depois que a baleia pára não se pode demorar muito para amarrá-la, pois senão ela acaba afundando. O resultado é que agora temos que pular na água, fazer o amarro e reboca-la até a armação.

A volta é sempre complicada, uma vez que Cláudio, o timoneiro, ainda não tem muito tempo nesse oficio. Voltamos pelo Rio Vermelho, indo em direção a Barra - que é à entrada da Baía de Todos os Santos – e novamente de encontro com a tempestade. Até agora, esta quinta-feira, 12 de agosto do ano de 1768 de Nosso Senhor, está um péssimo dia, principalmente pelo que ainda vem aí. O mar revolto nos joga contra as pedras do Rio Vermelho, ainda assim Cláudio timoneiro consegue manter o rumo. O outro escravo chamado José, faz uma oração entrecortada por soluços, e eu tenho vontade de me juntar a ele, mas estou apavorado demais para pensar em alguma reza. Já está escurecendo e somente agora começamos a contornar o banco de areia Santo Antonio, passando pelo Forte de Santo Antonio da Barra. O Farol ajuda a encontrar o caminho nesse início de escuridão.

- Olha lá timoneiro, a chuva tá passando, vamo pra ilha logo antes que escureça de vez e o breu tome conta do mar, disse o mestre Dionísio, o arpoador de baleias.

Em resposta, ouviu-se apenas um leve rangido de dentes proveniente do timoneiro Cláudio. Ainda assim, ele obedeceu à ordem mudando o rumo da embarcação em direção a ponta da ilha de Itaparica. O restante da viagem, apesar de toda agitação do mar, foi mais calmo para todos, particularmente para mim. Embora o medo tivesse passado, uma esquisita sensação me incomodava.